Um dos grandes identificadores dos evangélicos, ou do “povo
crente”, como dizem alguns, é a sua apreciação pela Bíblia. Houve até mesmo
épocas quando os conhecidos crentes eram chamados de “Bíblias”.
No entanto,
apesar da tradição que vincula os evangélicos à Bíblia, será que essa realidade
é verificável?
Surpreendentemente, parece que grande parte da tradição
evangélica nada tem a ver com o estudo sério das Escrituras Sagradas.
Muitas idéias e práticas sagradas e supostamente bíblicas
têm outras origens: a cultura norte-americana, brasileira, européia, africana,
etc. Certa ocasião, fiquei atônito quando tentei compartilhar o Evangelho com
um homem numa viagem de ônibus. Ele, ao
perceber minha linha de pensamento, perguntou: “Você é crente?”. E prosseguiu:
“Mas é crente mesmo?”. Confuso, respondi: ”Sim”. E, mais do que depressa, ele
disse, com firmeza: “Você bebe café?”.
Sem entender, respondi afirmativamente,
e, então esboçando largo sorriso, o homem reverberou: “Então não é! Porque o
crente que é crente mesmo, nem café bebe!”. Perplexo, fiquei a pensar que tipo
de Evangelho se divulga em nossos dias! O cristianismo de alguém é avaliado
pelo café ingerido?!
Durante muito tempo envolvido com a áurea da literatura,
principalmente a teologia e acadêmica, posso atestar que o tipo de livro menos
procurado pelo mercado evangélico chama-se “comentário bíblico”. Apesar de
termos cerca de meio milhão de pastores e líderes no Brasil, parece que a
maioria deles não entende que o estudo aprofundado da Bíblia é tarefa urgente e
indispensável.
Esse distanciamento das Escrituras Sagradas, presente no
meio evangélico, tem facilitado o surgimento de outras tradições, marcadas por
idéias e costumes que levam a comunidade para uma outra direção, para longe de
uma teologia fundamentada na Bíblia.
Infelizmente - é verdade -, há muita “idéia de crente” que é
contra a Palavra de Deus. Não faz tanto tempo assim, numa comunidade cristã
ouvi uma multidão aplaudir a seguinte frase enfatizada por um de seus líderes:
“Deus precisa de você”. O discurso prosseguiu sugerindo que Deus nada poderia
fazer sem a atuação humana. Que tipo de Deus é esse?
Pode ser de algum grupo
que se intitula evangélico! Mas não é bíblico! Afinal, como lemos em Atos 10.25
e 26, Deus, por definição, não precisa de nada: “O Deus que fez o mundo e tudo
o que nele há é o Senhor dos céus e da terra, e não habita em santuários feitos
por mãos humanas. Ele não é servido por mãos de homens, como se necessitasse de
algo, porque Ele mesmo dá a todos a vida, o fôlego e as demais coisas”.
Em muitos cultos evangélicos é comum ouvir o povo agradecer
a Deus por estar reunido na “casa do Senhor”. A idéia particular dos crentes
até existe nas Escrituras, só que não no cristianismo do Novo Testamento. Havia
um tabernáculo e um templo no Antigo Testamento. Mas Jesus mudou o enfoque,
afirmando que Deus não esta restrito a templos. A verdade é que Deus não habita
no prédio da Igreja!
Em João 4, a mulher samaritana queria saber se Deus dava
prioridade a Jerusalém ou a Samaria como “casa de Deus”. Jesus deixa claro que
a adoração deve ser em espírito e em verdade (Jo 4.23). O Novo Testamento, ao
contrário dos crentes, ensina que a casa de Deus somos nós, onde o Espírito
Santo habita. Em 1Pedro 2.5 descobrimos que somos “as pedras vivas” e a ”a casa
espiritual”.
Outra tradição evangélica, que assusta até descrentes, é que
para Deus “não há pecadinho ou pecadão”.
Defendendo-se a teoria de que todos os pecados são iguais para Deus! É
possível imaginar que um canibal e um pedófilo assassino sejam equiparados a
quem não ora sem cessar (1Ts 5.17)?
É absurdo! É provável que a má interpretação tenha surgido
de Tiago 2.10, que afirma que “quem tropeça num só ponto da lei é culpado de
todos”. Na verdade, o texto apenas nos mostra que apenas um pecado é suficiente
para nos deixar numa condição de pecadores diante de Deus. Como Deus é santo, um
simples pecado nos classifica como condenáveis.
No entanto, isso não quer dizer
que todos os pecados são iguais. Em João 19.11, Jesus diz a Pilatos que aquele
que o havia entregado a Pilatos tinha “maior pecado”. O texto é explícito! A
própria Bíblia faz diferença entre pecado e abominação (algo detestável,
repugnante), como vemos em Levítico 18.22 (também em Sl 19.13 e Pv 6.16-19).
Erros “inofensivos”
No quadro de avisos de alguns templos evangélicos não é
difícil encontrar a seguinte frase: “Muitas oração, muito poder”. Apesar dom
impacto do refrão, devemos perguntar: “Onde está escrito isso na Bíblia”?
Poderíamos fazer um gráfico estatístico e matemático da oração e estabelecer
seu desempenho? É irônico. Jonas, o profeta que foi usado para trazer o
despertamento de Nínive, aparentemente não fez nenhuma oração! Deus é soberano!
Ele faz como quer. Certamente, muitos irão dizer que Jonas é exceção! Voltemos
à Bíblia. Desde quando as orações de Elias funcionaram pela quantidade? Jesus
criticou a repetição de orações (Mt 6.7), e em Tiago 5, onde Elias é
mencionado, sua oração não é “muita”, mas fervorosa (v. 17). O texto enfatiza
que a oração que funciona é a de um “justo” (v. 16), e isso não tem nada a ver
com a “quantidade”.
Estes são apenas alguns exemplos de tradições evangélicas
não fundamentadas nas Escrituras Sagradas. O problema é que esses erros
“inofensivos” acabam nos afastando do que importa, nos levando a perder tempo
com coisas desnecessárias e secundárias. Temos a doutrina do sábado, da
gravata, do paletó, da unção, etc.
Corremos o risco de criarmos tradições
humanas que tomam o lugar da Palavra de Deus (Mc 7.9). Hoje, quando se fala em
cristão evangélico, imagina-se que se trata de uma pessoa sem vícios, que não
bebe, não fuma, não dança, não joga etc. Ora, ninguém precisa ser cristão para
viver desta maneira. Há ateus que não fumam e nem bebem. Isso não é questão de
espiritualidade, mas sim de inteligência!
Estamos criando uma caricatura do Evangelho. Ao contrário,
Deus deseja pessoas salvas por Cristo, misericordiosas, justas, incorruptíveis,
dispostas a perdoar e capazes de amar.
Parece que os profetas enfrentaram algo semelhante em sua
época. Ainda hoje, as santas palavras de Miquéias ecoam bem alto: “Com que eu
poderia comparecer diante do Senhor e curvar-me perante do Deus exaltado?
Deveria oferecer holocaustos de bezerros de um ano? Ficaria o Senhor satisfeito
com milhares de carneiros, com dez mil ribeiros de azeite? Devo oferecer o meu
filho mais velho por causa da minha transgressão, o fruto do meu corpo por
causa do pecado que eu cometi? Ele mostrou a você, ó homem, o que é bom e o que
o Senhor exige: pratique a justiça, ame a fidelidade e ande humildemente com o
seu Deus” (Mq 6.6-8, versão NVI).
Bibliografia
Revista Enfoque Gospel – Edição 74 – Ano 7 – Setembro 2007 –
Luiz Sayão (lingüista e hebraista pela USP e vencedor do prêmio Abec 2003
– www.revistaenfoque.com.br).
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